quinta-feira, 11 de abril de 2013

Lídia Jorge


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Encontramo-nos hoje aqui para celebrar dez anos sobre a publicação do romance O Vento Assobiando nas Gruas, mas, ao fazê-lo, devemos celebrar também trinta e dois anos (O Dia dos Prodígios, o primeiro romance de Lídia Jorge, é de 1980) de produção literária. Nestes maus tempos, ou tempos maus, em que vivemos, e que são também demasiadas vezes tempos de má literatura, faz ainda mais sentido celebrarmos os escritores que, como Lídia Jorge, criam livros contra a corrente e que continuam o seu labor literário com perseverança, teimosia e também uma necessária intransigência, preservando para a escrita e para a literatura um lugar com dimensões transcendentes, uma presença real.

Um dia escutei da Lídia, já não me lembro em que contexto, uma observação que guardei até hoje. Lembro-me dela muitas vezes, refiro-a outras tantas e ela foi muito importante para mim, para que pudesse entender por que é que, um dia, também eu quis escrever. Defendia a Lídia que o escritor é alguém que, num determinado momento da vida, é remetido para um espaço marginal, de exclusão, o que o leva a tornar-se um extra-ordinário, um excecional observador da vida e dos outros. Estando de fora, tornando-se um Outro, o escritor vê para além do evidente e recolhe do mundo as impressões mais subtis e dos homens a verdade da sua condição. Milene Leandro, a protagonista de O Vento Assobiando nas Gruas, que sofre de oligofrenia, é, também ela, ao mesmo tempo, uma excluída e uma excecional testemunha do mundo. Neste sentido, ela pertence à família literária do epiléptico Príncipe Míchkin, o Idiota para a criação do qual Dostoiévski se inspirou em Dom Quixote e, através do qual, o escritor quis criar «a imagem do homem positivamente bom». Não por acaso O Idiota foi, e continua provavelmente a ser, um dos romances mais incompreendidos de Dostoiévski. E não por acaso Milene é talvez a figura mais importante criada por Lídia Jorge. Nela se expressa uma individualidade heroica, porque natural e espontânea.

Aos 34 anos, Milene observa o mundo com a inocência que genericamente se atribui a uma criança (isto a acreditarmos que as crianças são mais inocentes do que cruéis...). Sozinha em Valmares, sem a família, que partira de férias, Milene toma conhecimento da morte da avó (Dona Regina, cujo corpo foi encontrado em cima dos portais da Fábrica Velha) e assiste ao seu funeral. Enquanto vive estes acontecimentos, Milene procura traduzi-los em palavras, para que os possa vir a relatar à família. «Como muitas vezes lhe sucedia, possuía todos os elementos encadeados dentro da sua ideia e, no entanto, verdadeiramente, não dispunha de nada para dizer.»

Como o longo corpo da Fábrica Velha estendido ao sol, como as onze palmeiras em frente, como o campo de morraça em volta, depois como as gruas a que sobe o cabo-verdiano Antonino, Milene tem o saber das coisas caladas, o saber e a memória das testemunhas passivas. Mas, Milene não possui o poder de dizer as coisas que sabe de uma maneira certa, com uma forma que faça justiça àquele saber. Esse papel é dado à narradora, prima de Milene e, através dela, à autora, à escritora, que, como Milene, sabe, e que, por ela, diz. Os outros podem até ter tido «a intenção de a empurrar para o domínio da insignificância e da obscuridade, esse lugar onde tudo se perde e anula antes de tempo». Mas, escreve a narradora, «nós não deixámos».

A história do acolhimento de Milene pela família cabo-verdiana Mata (que há cinco anos é inquilina do património degradado da família Leandro, a Fábrica de Conservas, o «Diamante») e a história de «um amor comum, normal, indizível» entre Milene Leandro (neta da matriarca Regina e sobrinha do presidente da Câmara de Valmares) e o viúvo Antonino Mata (neto da matriarca Ana Mata) são histórias de dias da ira e de «confronto com a desordem do Mundo». Aqui se retrata o jogo que, muitas vezes (talvez a maior parte das vezes), está por detrás dos interesses políticos e financeiros, o jogo da crueldade social, que implica a subjugação de uns por outros. A denúncia deste jogo está presente, de uma forma mais ou menos vincada, em todos os romances de Lídia Jorge. Mas, aqui, em O Vento Assobiando nas Gruas, Lídia Jorge atinge um ideal meio campo entre a moral e a estética, e fá-las mover num mesmo tom (como Harold Bloom defende que George Elliot o fez em Middlemarch).

O cosmos das famílias Leandro e Mata na cidade ficcionada de Santa Maria de Valmares serve a imaginação moral. É uma metáfora do mundo, claro, e dos homens. Uma metáfora moral, ou, se preferirem, uma metáfora humanista, que fala de homens capazes de esterilizar outros, de os tornar transparentes, de os humilhar. Fala de traição e crime de homens sobre outros homens, seus irmãos. Poderosa como esta metáfora moral, encontramos também aqui uma metáfora da imobilidade e da mudança: o vento assobia nas gruas e elas remexem a terra para a modificarem, como a cultura moderna remexe em culturas antigas, para as alterar e as obliterar. Como em todos os livros de Lídia Jorge, prevalece sobre toda as metáforas e toda a narrativa de O Vento Assobiando nas Gruas uma ideia de humanidade e fraternidade que resiste, estoica, por mais excluída que ela seja e por mais que se vivam maus tempos, ou tempos maus.

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